“Ó retrato da morte! Ó
noite amiga,
Por cuja escuridão
suspiro há tanto!
Calada testemunha do
meu pranto,
De meus desgostos
secretária antiga!...” Bocage, em Rimas. (lead)
A carta Morte apareceu repentinamente, pulou do baralho enquanto eu separava os
arcanos maiores dos outros. Típico dela, não é?! A morte é repentina, furtiva e
inevitável.
Mas
o que significa este símbolo durante uma leitura de Tarô? Símbolo, sim, pois a
morte em si já traz consigo uma carga imensa de crenças, sentimentos e emoções.
O que o criador do Tarô ou quem quer que a tenha inserido nos arcanos maiores quis
dizer ao acrescentá-la? Que mensagem quis nos deixar?
A
interpretação mais usual para esta carta, e que usei durante anos, é que se
tratava do prenúncio de uma transformação radical que aconteceria inevitavelmente
na vida do consulente. Seria uma virada de mesa total e completa.
Costumava,
ainda, dizer que não necessariamente se tratava de morte física, mas de uma
perda significativa em alguma área da vida. Essa interpretação foi a que me
pareceu mais acertada por muito tempo, até descobrir que “enfeitar o pavão”,
que no caso é simbolizado por um esqueleto bem feio, não ajudava em nada o
consulente.
“A morte é certa.
Esqueçamo-la.” Balzac
Com
o tempo e a maturidade, já que comecei a ler Tarô muito jovem (comecei a ler por intuição, fiz o curso com
14 anos no primeiro Espaço Esotérico do Grande ABC – Centro de Estudos Esotéricos
- e não parei mais de estudar), concluí que a Morte representa, de fato, a morte, ainda que seja sua sensação vívida.
No Tarô, quando esta carta aparece, retrata o momento da morte, seja do
consulente, de alguém de seu convívio ou de uma parte do seu ser.
A experiência da morte causa às pessoas as reações mais diversas e sempre, sempre
causa alguma reação. O que não existe é vivenciar esta experiência e continuar
como se nada tivesse acontecido. Até o psicopata reage ao evento 'morte', ainda que seja sentindo prazer em causá-la e/ou observá-la.
No caso da morte de alguém que se ama, a pessoa se sente despedaçada, falta-lhe o chão. Os
corpos mental, espiritual, emocional e físico se desagregam, se desencontram; a
personalidade fica estilhaçada, os hábitos sem sentido, as crenças abaladas, o
conceito de eu fica fragmentado. Daí que quem fica igualmente passa pelo processo 'morte', pois sente que uma parte de si morreu também. Isso é morte e é bem real.
O
estado acima pode ser gerado, ainda, por uma experiência de quase-morte do próprio
consulente ou de alguém que lhe é próximo. E essa quase-morte pode ter causas diversas, como se recuperar de
uma doença que quase o matou, sobreviver a um acidente ou catástrofe, ver
alguém morrer e até ser obrigado a tirar a vida de outrem em caso de
auto-defesa.
Por fim, términos de relacionamentos, a perda de um amor, igualmente podem se traduzir em uma experiência de morte, que causa a desagregação do indivíduo descrita acima, tanto quanto na perda física de alguém que ele ama.
Quando a morte aparece em uma
leitura, sem dúvida sinaliza que uma experiência radical ocorreu ou está a
caminho. E esteja certo que é mais do que uma mera “virada de mesa” ou “uma
transformação radical em alguma área da vida”. A Morte mostra um período de perda profunda, escuridão, medo, incerteza, até que a pessoa possa ressurgir, renascer como alguém
novo e inteiro, numa vida nova e completa.
A Morte traz um período de luto
Entre o velho que vai embora e
o novo que se estabelecerá, deve haver um período de luto nesta transição. Os alquimistas
chamavam este estado de mortificatio. É
importante que o consulente compreenda que deve vivenciar este luto, pois
tentar fugir deste estado transitório pode causar inúmeros prejuízos à pisque.
Jung disse que aceitar tanto a
morte quanto o nascimento como partes da vida, é tornar-se verdadeiramente
vivo. “Não desejar viver é sinônimo de não querer morrer. Vir a ser e deixar de
existir são a mesma curva. Quem quer que não acompanhe essa curva permanece
suspenso no ar e fica paralisado. A partir da meia-idade, só permanece vivo
quem está disposto a morrer com a vida.” E complementa: “Aceitar o fato de que
você perece a seu tempo é uma espécie de vitória sobre o tempo.”
A Morte é a grande niveladora
do Universo!
Sem dúvida a morte é universal
e impessoal. Sua representação no Tarô de Marselha, por exemplo, é a de um
esqueleto segurando uma foice, ceifando a vida, dilacerando os seres. Cabeças,
mãos, pés, pedaços de corpos humanos estão por toda a parte.
As cabeças
simbolizam as idéias, os pontos de vista são simbolizados pelos pés e as
atividades são representadas pelas mãos; todas estas partes do corpo jazem
inúteis, todos os aspectos da vida parecem ter sido cortados, inclusive o seu
princípio orientador (representado pela cabeça com a coroa), mostrando que o
indivíduo não é mais dono do seu destino, de suas decisões.
No Tarô de Waite, a Morte vem
na figura de um cavaleiro que avança impassível sobre pessoas de diferentes
níveis sociais e idades. Para a morte é indiferente. Ela chega para todos: homens, mulheres, crianças, idosos, ricos, pobres.
A foice representa Cronos ou
Saturno, deus do tempo. Por outro lado, o cavalo mostra a idéia medieval de
morte, quando epidemias assolavam comunidades inteiras e nada podia ser feito,
pois as doenças da época eram desconhecidas e não havia tratamento. Assim
também com as catástrofes naturais, cujas causas desconhecidas impediam o
prenúncio. Portanto, a morte devia parecer uma cavalaria avançando sobre as
pessoas, abatendo-as aos milhares, ceifando muitas vidas num só golpe.
A pergunta crucial é: porque a
morte foi inserida na metade dos arcanos maiores ao invés de ser posicionada no
final, como seria de se esperar? Esse questionamento é válido se considerarmos
que os trunfos falam de uma viagem, do roteiro da vida e o viajante é o Louco,
que não tem número e vaga livremente pelos arcanos maiores. Esse viajante viria
do plano espiritual (A Sacerdotisa, a qual entendo que deve vir antes do Mago),
depois há o princípio inteligente que é o espírito (O Mago), gestado pela
Imperatriz tendo como pai o Imperador.
No Carro, o viajante cresce e
sai para o mundo, encontra seu destino (A Roda da Fortuna), sofre (O
Enforcado), passa por provações e desestruturações (A Torre), aprende a ter fé e
esperança (A Estrela) até a vitória final que é o Mundo, isto é, atingir sua plena integração consigo mesmo e de si - microcosmos - com os deuses - macrocosmos. Deste ponto de vista,
não seria mais lógico que a Morte estivesse no final, depois de tudo?
No meu entendimento, a vida só
tem sentido quando compreendemos o quão efêmera ela é. E somente podemos ter
esta compreensão a partir da experiência de morte. O viajante, assim como nós,
consegue entender e valorizar este dom maravilhoso que é vida apenas quando se
depara com esta experiência marcante que é a morte, seja a morte de alguém que
lhe é próximo, seja a morte de si mesmo, pela desagregação, fragmentação do eu através das perdas significativas.
A carta anterior, o Enforcado,
mostra o viajante ou o consulente dependurado pelo pé, encarcerado em si mesmo.
Se o Enforcado não quiser ficar suspenso, paralisado espiritualmente, precisará
dar o passo seguinte que o conduzirá através do vale das sombras, à aceitação da
morte. Afinal, só pode nascer de novo aquele que morre.
Perceba que não há opção. Se
decidirmos nos libertar daquela situação incômoda para sermos livres, devemos
confrontar a morte. Se não o fizermos, inevitavelmente estaremos nos condenando
à morte, como Jung explicou. A diferença é que no primeiro caso, quando optamos
por enfrentar a morte conscientemente, ou seja, quando decidimos abrir mão,
perder para poder recomeçar, estaremos nos libertando das amarras do limitado e
cômodo mundinho no qual nos encerramos para abrirmos nossas mentes para algo
bem maior. Neste caso, a morte é um processo espiritual e mental. No segundo
caso, se nos negarmos a mudar, a crescer, a enfrentar as perdas e a dor,
estaremos nos condenando à morte física. A negação da morte é, de fato, um
processo psicológico perigoso.
Portanto, depois desta carta, o
viajante passa a encarar a vida, a existência, com outros olhos, com mais
equilíbrio e respeito (A Temperança), encarando seus medos, sua sombra (O
Demônio), testando seus limites e sofrendo as consequências (A Torre), aprendendo
a confiar na Criação e a ter fé no plano espiritual e em si mesmo (A Estrela),
e assim sucessivamente.
Tudo que se passa depois da
Morte são experiências que proporcionam grande crescimento espiritual, pessoal, portanto. Até a Morte, ainda estamos apegados aos valores básicos e instituais
da vida como comer, dormir, estudar, trabalhar, família. Tudo gira em torno do
eu.
Depois da experiência da Morte,
passamos a pensar por nós mesmos, a questionar, a enxegar de fato o mundo ao
nosso redor e a querer viver, viver plenamente, cada segundo. Conseguimos ver
além dos nossos umbigos, percebemos os outros, as interações possíveis,
prováveis e improváveis, e como as trocas podem ser ricas e maravilhosas. O
Julgamento ocorre de nós para nós mesmos, através da nossa consciência. A
vitória final – O Mundo - é quando vencemos nosso pior inimigo: nós mesmos.
“Conhece-te a ti mesmo!”